•  O Sentimento de Interioridade como Qualidade do Ser Mulher



Nos últimos anos, as mulheres vêm investigando e escrevendo muito sobre psicologia e a condição feminina, um fenômeno surpreendente frente aos parâmetros de um passado, não tão remoto, de escassas possibilidades para as mulheres refletirem sobre si mesmas. É necessário ressalvar, que a psicanálise, enquanto disciplina manteve-se aberta as mulheres, tendo nelas muito de sua produção atual.

Entretanto, a própria psicanálise tem, recentemente, enfrentado a pressão de uma nova realidade social, na qual, como diagnostica Wallerstein, evidencia "problemas como aqueles criados pelos movimentos feministas e o profundo impacto deles sobre nossa compreensão da psicologia normal e de psicopatologia das mulheres, por exemplo, a respeito das nossas noções familiares de passivo e ativo, ou masoquismo normal, e dos tão falados atributos de comportamento masculino e feminino; e novamente, aquelas questões relativas à nossa compreensão de comportamentos sexuais e patologia sexual trazidas à baila pela mudança de posição social e legal de indivíduos convencionalmente designados de homossexuais ou com desvios sexuais." (1)

É interessante notar que este diagnostico foi feito, em 1985, por um psicanalista que foi presidente da IPA. Portanto, podemos avaliar que já naquela época existia uma necessidade das instituições psicanalíticas responderem as questões emergentes de uma nova ordem ética de comportamentos humanos.

É nesse contexto — de produção, pesquisa, e transformação social — que surge em 1989, A Mulher sem Qualidades de Annie Anzieu; psicanalista da Associação Psicanalítica Francesa, tendo dirigido o departamento de psicanálise, no serviço de psiquiatria à criança do Hospital Salpêtrière.

Não é uma psicanalista especialmente conhecida no Brasil, mas certamente, através do lançamento de sua principal obra pela editora Casa do Psicólogo, Annie Anzieu não deixará de ocupar um lugar nos estudos de todos aqueles que se preocupam com tal temática.

As analistas mulheres parecem concordar que apesar dos preconceitos do pensamento Freudiano no que se refere ao universo feminino, ainda assim, o aporte psicanalítico deixado por Freud auxilia na concepção do feminino, ainda que, suas teorias psicanalíticas sejam empreguinadas de um sexismo. Sua obra, diz, Juliet Mitchell, "como baluarte da opressão ideológica das mulheres é, sem dúvida alguma, de grande importância. Mas só podemos entender seu significado, se compreendermos primeiro que eram exatamente as formações psicológicas produzidas dentro das sociedades patriarcais que ele estava revelando e analisando." (2)

O ensaio de 1925, trata pela primeira vez a diferente história psicossexual de meninos e meninas, ele estabelece um desenvolvimento distinto para meninas e meninos, considerando essa formação dentro de uma cultura de domínio masculino. Neste momento, Freud reconhece a importância da fase pré-edipiana, principalmente para as meninas. Do meu ponto de vista, esta é a grande contribuição que Freud nos lega para a investigação das diferenças de gênero, possibilitando que, de fato ocorra a aproximação das questões relativas ao ser mulher e ao ser homem.

Mas, voltemos ao livro, e retomemos o pensamento de Anzieu, já que algumas considerações foram lançadas.

A primeira parte do livro é uma reflexão sobre o ser mulher depois de Freud, na qual encontramos o capítulo "Negativo e Feminino: A Mulher sem Qualidade" que inspira o próprio título, e não como imediatamente nos ocorre, uma referência à obra de Robert Musil, "O Homem sem Qualidades". Anzieu opõe-se a idéia da mulher no negativo, do feminino como o não masculino, ou da mulher como o negativo da mãe. "Os homens pensam a mulher, e acham simples retirar-lhe um pênis. E depois, essa perspectiva evoca possibilidades inquietantes: a contragosto eles se defendem por uma construção teórica — reivindicação, castração, falta. Como se ser mulher fosse um defeito, uma doença, uma tendência ao não-ser" (p.3).

A autora propõe que pensemos a mulher naquilo que expressa o mais fundamental do ser feminino — o sentimento de interioridade. Para Anzieu o modelo da interioridade feminina pode oferecer respostas a questões colocadas pela essência da feminilidade. No entanto, não pretende contrapor o modelo de interioridade ao de falicidade, "mas modificar a representação de suas relações pelo reconhecimento de uma especificidade do feminino, que na realidade é apenas uma categoria de pensamento derivada da existência da mulher. Essa é uma questão importante já que essas diferenciações estruturam o aparelho psíquico desde a mais tenra idade." (p.5)

Uma das questões que julgo crucial é se o uso desses "modelos anatômicos" para explicar as diferenças entre homens e mulheres, não empurra a psicanálise excessivamente para o terreno do biológico, e de certo aquém de Freud, delineando uma vida psíquica agarrada a anatomia do corpo, mesmo tratando-se do corpo erógeno, quando deixa de investigar as produções de fantasia e formas de pensamento, passando a verificar as sensações advindas do corpóreo.

Ao invés de configurar a diferença no campo das representações e experiências psíquicas entrelaçadas ao corpo, é como se o aparelho psíquico fosse construído por uma gama de experiência de sentimentos do corpo, o que pode equivaler a uma transposição de representações anatômicas imaginárias para o aparelho psíquico. De certo modo, uma declaração de morte ao conceito freudiano de pulsão ou mesmo de representação psíquica em Klein onde a experiência emocional é prevalente sobre o próprio corpo ou determinações anatômicas, aí reside toda a complexidade da qual a psicanálise investiga na vida psíquica dos seres humanos — aquilo que é pode simultaneamente não ser. Uma mulher de corpo, com sensações de corpo feminino pode, contudo, em fantasia pensar-se como um homem.

Como nos afirma Emilce Dio Bleichmar, "esta passagem do corpo ao simbólico na determinação da identidade, até hoje chamada identidade sexual — justamente pelo peso atribuído à marcação anatômica — e que de agora em diante deveríamos denominar identidade de gênero, contribui para reintroduzir na teorização psicanalítica uma orientação que os próprios trabalhos de Freud sobre a feminilidade interromperam: a importância da realidade psíquica, do registro da fantasia, da crença, do simbólico..." (3). A questão, portanto, é como alcançar o que seria o mais fundamental e característico do ser mulher sem reduzí-la a certas qualidades que podem contribuir mais para uma adjetivação das diferenças do que o entendimento das mesmas. Como podemos ver, o problema é, no fundo, metapsicológico, e depende dos pressupostos que adotarmos.

A relação da escrita e o feminino constituem a segunda parte, na qual é desenvolvida a noção de que a escrita feminina substitui a gestação ou lhe dá continuidade, o texto seria, então, o resultado de uma sublimação da relação com um ser amado.

Alguns de seus comentários divergem frontalmente da visão de pensadoras e pesquisadoras feministas sobre o que tem levado as mulheres a escreverem e produzirem tanto nos últimos anos. Acredita-se que com a descoberta dos anticoncepcionais e com a distinção concreta entre mulher e mãe (maternidade), tornou-se possível a expressão de outros aspectos criativos e participativos da mulher na sociedade, que até então confundiam-se com a questão da reprodução.

Mas esta não é a avaliação de Anzieu, que julga estarmos numa época na qual os homens tem concedido as mulheres o direito de serem estéreis, e que escrever como mulher seria um protesto, diz ela, pela "imposição de uma casualidade linear do falo à criação... a reivindicação atual das mulheres de escrever como mulheres é o resultado de um narcisismo feminino mal estabelecido nos seus fundamentos somáticos, em muitos casos, sem dúvida, por identificação com algumas lacunas narcísicas maternas: um erro no conhecimento dos privilégios da feminilidade." (p.82)

Por fim, na terceira parte, ela analisa as "qualidades" da mulher analista e a função do feminino na transferência utilizando-se dos conceitos já desenvolvidos nos capítulos anteriores, tais como cavidade, germinação, retenção, penetrabilidade, etc.

A mulher, para Anzieu, é um ser essencialmente penetrável, um continente que contém a vida e as suas marcas de transformação, gestação silenciosa e paciente do novo, lugar de passagem e nascimentos. Assim, a mulher "coloca à disposição do analisando o espaço psíquico natural de que ela é construída, espontaneamente envolvente, `instintual' no sentido freudiano.", o sentimento de interioridade, a essência especificamente feminina. Esse estado pode existir nos homens analistas, mas para tanto, é necessário de acordo com a autora, que ocorra o alargamento das capacidades identificadoras colocando-o em contato com as partes femininas da sua sexualidade.

Para o leitor exigente, contudo, é preciso sobreavisá-lo de que nem tudo é aceitável tranquilamente, muito pelo contrário, o livro merece ser lido pelo vértice dos problemas que ele deflagra, ora por querer, ora sem perceber.

Afora as advertências teóricas, há também outra particularidade que merece ser destacada, qual seja, a escrita de Anzieu. O seu estilo de escrever simula, em alguns momentos, uma "poética psicanalítica" com a intenção de desvelar literariamente o mundo do feminino. Assim, ela acaba por produzir momentos de aguda sensibilidade conseguindo descrever fenomenológicamente experiências emocionais e sensoriais, juntamente com trechos de imprecisão, que confundem o desenvolvimento teórico dos conceitos — uma recriação poética dos fenômenos internos, para daí extrair algum conhecimento.

Como o leitor pode notar, o livro possui a qualidade de enfrentar o "enigma da mulher", não evitando adentrar nos "buracos negros" da psicanálise, tais como a origem do mundo mental e a constituição das diferenças sexuais e psíquicas entre os humanos. Por tudo isso, vale a pena conferir o percurso corajoso e original de Anzieu.