•  Jornal da Psicanálise | Instituto de Psicanálise – SBPSP | a prática da teoria na psicanálise

      VOLUME 25 – 1992 - nº 48



METAPSICOLOGIA E TEORIA: A PRÁTICA DA TEORIA NA PSICANÁLISE
Marina Massi


""Quando o viajante canta no escuro, pode espantar o seu medo, mas nem por isso vê mais claro".
Freud

INTELECTUALIZAÇÃO E RACIONALIZAÇÃO
O equívoco entre intelectualização como defesa e a prática da teorização no imaginário psicanalítico tem gerado preconceitos e distorções. A importância desse debate reside, principalmente, na esfera da formação e transmissão da psicanálise, pois esse equívoco invade o terreno da prática da teoria instaurado um tipo de psicanálise, de analistas e de produção teórica.

O termo intelectualização não foi diretamente usado por Freud ao longo de sua obra; quem se refere explicitamente a ele é Karl Abraham em "Uma forma especial de resistência neurótica ao método psicanalítico" (1919) e Anna Freud em O ego e os mecanismos de defesa (1936). A preocupação desses autores centra-se na resistência dos pacientes. A intelectualização, diferentemente da teorização, deve ser entendida como uma modalidade de resistência para com o tratamento pela qual o paciente busca uma formulação discursiva, racional, abstrata ou geral, de seus conflitos, emoções e afetos, na tentativa de melhor dominá-los. A intelectualização tem como tarefa principal neutralizar os afetos, evitando para tanto a regra fundamental da livre associação.

Assim, podemos avançar um pouco mais, observando que se a intelectualização é um mecanismo de defesa do paciente diante do processo analítico, podemos supor que o analista quando intelectualiza também está revelando uma resistência. O analista pode estar lançando mão de recursos discursivos (usando da própria teoria e discurso psicanalítico) com o objetivo de dominar o surgimento de seus afetos e fantasmas, mobilizados pela relação transferencial com o paciente.

Nós, mesmo enquanto analistas, estamos expostos às vicissitudes do funcionamento psíquico descrito pela psicanálise. Assim, afirma Fédida: Do sintoma como teoria do neurótico à teoria podendo se tornar sintoma do analista, percebemos que a teoria pode, com efeito, ser uma formação intratransferencial assim como o sonho. Quanto a descrever de que maneira o auto-engendramento da teoria está principalmente ligado ao trabalho (perlaboraçao e elaboração) no tratamento, seriamos remetidos ao caráter axiomático da regra fundamental e a compreensão de sua lei de funcionamento.

Cabe aqui diferenciarmos também a teorização da racionalização. Esta última, conceituada por Freud, é o processo pelo qual o individuo procura apresentar uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ação, uma ideia, um sentimento, etc. de cujos motivos verdadeiros não se apercebe; fala-se mais especialmente da racionalização de um sintoma, de uma compulsão defensiva, de uma formação reativa (Laplanche, p.543). A diferença, portanto, entre intelectualização e racionalização está no fato de que a primeira é um mecanismo de defesa, e uma resistência ao tratamento visando neutralizar os afetos, ao passo que a racionalização não significa um evitar dos afetos, mas a atribuição de motivações mais plausíveis do que verdadeiras, dando-lhes uma justificação de ordem racional ou ideal (Laplanche, p.316).

Como assinala Freud em "Totem e tabu", uma função intelectual que nos é inerente, que exige, de todos os materiais que se apresentam a nossa percepção e a nosso pensamento, unificação, coerência e inteligibilidade; ela não teme estabelecer conexões inexatas, quando, devido a certas circunstâncias, é incapaz de apreender as conexões corretas. Ou, como diz Rouanet, a racionalização tem a função de conferir coerência e inteligibilidade a fenômenos cujas inter-relações reais não são compreendidas (p.184).

Entretanto, é característico da formulação do pensamento de Freud que, se por um lado o pensamento racional pode ser usado defensivamente (intelectualização e/ ou racionalização), por outro lado temos que essa capacidade de racionalidade (teorização) é também uma função do pensar.

Faz parte do desenvolvimento normal do pensamento que o indivíduo busque uma unificação, coerência e inteligibilidade procurando, entretanto, as conexões corretas. Não tentando eliminar as influências afetivas, pois isso de acordo com Freud seria impossível, mas subtraindo intensidade afetiva demasiada que impede a inteligibilidade do pensar; ou, conforme Bion, a tolerância com relação à angustia necessária ao processo de pensamento.

É o próprio Freud quem nos diz que nossa inteligência só pode trabalhar eficazmente se estiver subtraída das influências afetivas demasiado intensivas; caso contrário; comporta-se simplesmente como instrumento a serviço de uma vontade, e produz o resultado que esta lhe inculca... Os homens mais inteligentes se comportam como imbecis, desde que as idéias que lhes são apresentadas se chocam contra uma resistência afetiva.

Freud rejeitou a racionalidade valorizada em sua época, para semear uma nova modalidade de racionalidade contida na lógica da desrazão, onde o irracional explicita-se na ética do desejo. De modo algum Freud negou a razão; ao contrário, buscou conhecer os limites dela, para que o indivíduo pudesse, ao percebê-la condicionada e limitada, afirmar-se enquanto livre, mais sujeito de si.

O deslocamento da consciência como referência principal da experiência do humano, homo sapiens, trouxe luz às Geisteswissenchaften mas fagulhou mais uma suspeita sobre a objetividade e neutralidade nas ciências.

Bachelard, sensível a importância da experiência, nos adverte que: Os conceitos e os métodos, tudo é função do domínio da experiência; todo pensamento cientifico deve mudar ante uma experiência nova.

A descoberta de Freud do inconsciente pode ser, e é, vista por vários pensadores contemporâneos como paradigmática no campo das ciências. Assim, Freud pode ser pensado como o criador de um paradigma novo, de uma ruptura epistemológica.

Nesse sentido, a experiência do inconsciente mudou radicalmente a nossa concepção do mundo psíquico e da realidade. Assim, provisoriamente, podemos dizer que teorização, diferentemente, de intelectualização e racionalização, é o ato de raciocinar, expor, elucidar e interpretar fenômenos ou acontecimentos, buscando uma unificação coerente e inteligível que, contudo, não exclui lógica da desrazão ou, analiticamente falando, não elimina a esfera inconsciente e suas motivações. Este teorizar a que me refiro, diz respeito igualmente a pacientes e analistas.

Até aqui, entretanto, estamos apenas trilhando o caminho da problemática maior na qual está inserida a proposta deste artigo "a prática da teoria" —, se a psicanálise pode ser considerada ciência ou não, e as decorrências desses enfoques na produção de conhecimento psicanalítico. A forma de teorizar em psicanálise está intimamente vinculada ao tipo de enfoque que adotamos.

A TEORIA NA PSICANÁLISE
Retomemos, então, a nossa temática dentro da especificidade do nosso campo originário "a psicanálise". Assim, é Monzani que vai apontar a discussão específica da psicanálise numa direção extremamente interessante. Qual seja para ele a pergunta que se coloca não é: A psicanálise é uma ciência? Mas sim: Que tipo de cientificidade nos traz o discurso psicanalítico? E, a partir daí, nossa idéia de ciência deve ser reformulada ou não?

E mais, eu diria, como teorizamos nossas teorias? Qual o processo pelo qual elaboramos nossas teorias, e que tipo de teorias são construídas? Circunscrevendo a temática a partir dessas considerações, busquemos compreender o significado de teoria e metapsicologia na psicanálise. A teoria científica pode ser concebida no sentido genérico como um conjunto de concepções sistemáticamente organizadas que se propõem explicar, elucidar e interpretar fenômenos ou acontecimentos que se oferecem à atividade prática. Assim como procuram remeter diversos fenômenos ou saberes a algum principio único a uma lei ou a um pequeno número de leis.

Já a metapsicologia, de acordo com Laplanche, é o termo criado por Freud para designar a psicologia que fundou considerada em sua dimensão mais teórica. A metapsicologia elabora um conjunto de modelos conceituais mais ou menos distantes da experiência, como a ficção de um aparelho psíquico dividido em instâncias, e teoria das pulsões, etc. (4 p. 361). Se formos buscar uma compreensão mais abrangente, poderíamos dizer que metapsicologia é uma especulação de caráter psicológico sobre a origem, a estrutura e a função da alma, bem como sobre as relações entre a alma e a realidade. Essa definição pode nos dizer algo sobre a metapsicologia que complemente a de Laplanche. Afinal, trata-se de uma psicologia que traz consigo algo totalmente novo "o inconsciente" e que procura explicar a origem e o funcionamento dos fenômenos psíquicos, antes de ser somente uma prática terapêutica baseada em certas observações clínicas. É este fato que dá à metapsicologia freudiana o caráter de paradigma fundante, e de provocar uma revolução científica.

Por que falar de origem? Porque uma das diferenças entre teoria e matapsicologia em psicanálise reside na origem, ou seja, a metapsicologia elabora um conjunto de modelos conceituais (ficcionais) que explicam a origem do mundo psíquico quase que analogicamente às teorias de explicação da origem do universo; a teoria, por sua vez, desenvolve modelos baseados na observação de fenômenos ou acontecimentos sobre o funcionamento mental e emocional dessa concepção de mundo psíquico. Alguém poderia contestar dizendo que Freud descobriu o inconsciente através de observações clinicas e não de fantasias suas. É uma afirmação correta, porém, o que Freud viu inicialmente foram os atos falhos, os esquecimentos, os conteúdos latentes dos sonhos, etc..., e, a partir daí, construir um modelo (ficcional) que explicasse desde a gênese do mundo psíquico até o seu desenvolvimento.

O modelo conceitual, de acordo com Laplanche, é, neste sentido, uma ficção; podemos supor que se trata da presença da fantasia, elemento tão fundamental ao edifício psicanalítico, processada através do trabalho de elaboração. É interessante constatar que ao mesmo tempo que Freud cria a noção de inconsciente e delineia o seu funcionamento, ele o faz através de um tipo de teorizar que inclui suas próprias descobertas. Assim, a metapsicologia freudiana é em si mesma uma ilustração exemplar na medida em que Freud considerava que o mundo psíquico não era constituído somente pela consciência: mesmo pensamento mais abstrato e teórico conteria o processo primário e o trabalho de elaboração do processo secundário.

Mezan refere-se ao aspecto figurado dos modelos conceituais mais abstratos, compreendendo-os não como um vício de origem, mas a própria essência do trabalho de pensamento. E complementa que não devemos opor o ficcional ao teórico, como se o primeiro fosse puramente imaginativo e o segundo cientificamente rigoroso; nem... inverter a valorização e declarar que o teórico é pernicioso porque denota intelectualização e favorece as resistências contra a psicanálise, enquanto o ficcional estaria próximo do afetivo, sendo portanto não-saturado e em última instância mais verdadeiro.

A metapsicologia é, sob este vértice, o corpo teórico fundante, altamente abstrato e ficcional que, como diz Laplanche, se afasta da experiência clínica, mas, ao mesmo tempo, ela serve de psicanalista como um dos substratos essenciais do trabalho analítico. Podemos dizer, portanto, que a psicanálise é uma ciência com duas modalidades de teorização: a metapsicologia e o conjunto de muitas outras contribuições teóricas, realizadas por vários psicanalistas, que não são suscetíveis de se tornarem objetos da metapsicologia, mas que constituem as chamadas teorias psicanalíticas. Fédida nos diz que essas contribuições auxiliam o incremento do campo inteligibilidade dos objetos, de diferenciação clinico-técnica das condições de elaboração destes objetos, de descoberta de novos objetos.

A PRÁTICA DA TEORIZAÇÃO
Ao pensarmos na prática da teorização em psicanálise à luz da distinção feita, anteriormente, entre metapsicologia e teoria, podemos didaticamente dizer que existem pelo menos três tipos de produtores de conhecimento psicanalítico: os produtores teóricos de metapsicologia, os produtores de teorias psicanalíticas e, por último, aqueles que produzem reflexões clínicas tendo como suporte a metapsicologia, à luz das teorias psicanalíticas.

Como produtores de metapsicologia teríamos obviamente Freud, e outros como Klein, Bion e Lacan; ou seja, aqueles que produziram modelos conceituais com a preocupação sobre a origem, a estrutura e o funcionamento do mundo psíquico. E, sem dúvida, não pararam aí, pois toda metapsicologia tem suas derivações no campo da teoria, da técnica, da prática e até nos domínios da formação de analistas.

Os produtores de teoria, por sua vez, são aqueles que contribuem com formulações de conceitos teóricos ou técnicos que ampliam o campo de conhecimento e o campo da prática clínica, desenvolvendo aspectos (estruturais e de funcionamento) da própria metapsicologia ou, como diz Fédida, ampliando o œcampo de inteligibilidade dos objetos. Aqui, estariam psicanalistas como Rosenfeld, Betty Joseph, André Green, entre muitos outros que possuem importantes aportes teóricos para a constituição das teorias psicanalíticas.

A maioria dos psicanalistas, no entanto, tem como prática a reflexão teórica sobre casos clínicos à luz das teoria tomando como substrato a metapsicologia. Esses psicanalistas produzem reflexões que comprovam na prática clínica cotidiana a pertinência dessas teorias ou mesmo revelam a necessidade dessas de serem transformadas, ampliadas ou reformuladas. Neste sentido, não devemos considerá-los simples aplicadores de teoria; ao contrário, são eles que validam ou não o estatuto de conhecimento psicanalítico. E, mais, é através do trabalho de reflexão (teoria clinica) de muitos psicanalistas que se configuram as lacunas e o ainda desconhecido na psicanálise.

Todavia, somente alguns psicanalistas reúnem certas condições de observação clínica e trabalho intelectual capaz de produzir uma síntese ou formulação teórico-conceptual sobre a experiência psicanalítica que, para além do entendimento de seus próprios casos clínicos, diga respeito a muitos outros casos, tornando-se então uma contribuição à teoria ou, dependendo do âmbito, uma nova teoria, ou metapsicologia.

De qualquer modo, fica claro que produzindo reflexões, teorias ou metapsicologia, o trabalho do analista se dá no movimento de ir e vir da metapsicologia/teoria para a clínica e vice-versa "movimento simultâneo de conhecimento: psicanalítico, do analista com ele mesmo, sobre o paciente, e do próprio paciente, afinal, a razão de ser análise". Creio que a distinção entre metapsicologia e teoria psicanalítica merece ser mais aprofundada, pois a psicanálise inaugura um tipo de conhecimento que, pela própria natureza de seu objeto, cria um modo particular e peculiar no processo de teorização cientifica. Não deixa de ser científico, mas introduz novas necessidades no trato de seu objeto e campo de investigação. No último parágrafo de artigo intitulado "Rumo à epistemologia da psicanálise", Mezan contribui com um aporte nessa caminhada sobre a prática da teoria em psicanálise, quando indaga: Por que uma epistemologia da psicanálise é tão urgente para analistas? As relações silenciosas entre fantasia e teoria, e a dimensão de angústia presente na atividade de pensar, talvez tenham algo a ver com isso.

A prática do teorizar, para finalizar, não deve ser confundida com a intelectualização ou racionalização; ao contrário, na psicanálise a teorização significa transformar fantasias (processo primário) em conceitos (processo secundário), o que constitui uma elaboração tão árdua quanto o imenso trabalho do paciente de Wo Es war, soll Ich werden.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- BECHELARD, G. "O novo espírito científico", p.121, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
2- FÉDIDA, Pierre "Clinica psicanalítica": estudos, p. 107, São Paulo, Editora Escuta, 1988.
3- FREUD, S. "Reflexões para os tempos de guerra e morte", Obras Completas, vol.14, p. 31, Rio de Janeiro, Imago, 1980
4- LAPLANCHE, J., PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. 5ª Ed., Portugal, Editora Moraes.
5- MEZAN, R.
A) "Metapsicologia/fantasia", In revista Brasileira de Psicanálise, vol. 23, nº4, p.58, São Paulo, 1989.
B) "Rumo à epistemologia da psicanálise", In A vingança da esfinge, p.55, São Paulo, Brasiliense, 1988.
6- MONZANI, L. R. "Discurso filosófico e discurso psicanalítico", In Novos estudos Cebrap, nº 20. São Paulo, março de 1988
7- ROUANET , S.P. A razão cativa as ilusões da consciência de Platão a Freud. São Paulo, Brasiliense, 1985.

Agradeço as sugestões de Maria Elena Salles e Octávio L. de Barros Salles á feitura deste artigo.