•  ÉTICA E TÉCNICA EM PSICANÁLISE

    Luís Claudio Figueiredo - Nelson Coelho Junior / Marina Massi



O divã como morada da alma
Na apresentação do livro Ética e Técnica em Psicanálise, publicado pela editora Escuta, temos a impressão, ainda que em rápidas pinceladas, de estarmos no folheio de páginas promissoras no debate de dois temas, velhos conhecidos de guerra dos psicanalistas, que aqui arejados com inteligência, sensibilidade e elegância na escrita, brindam-nos com rumo diverso do tratamento dado a tais questões no âmbito da psicanálise.

Luís Claudio Figueiredo e Nelson Coelho Junior são autores, respectivamente, dos dois ensaios, “Presença, Implicação e Reserva” e “Fala, Escuta e Campo Terapêutico em Psicanálise”, organizados como ensaios mestres, acompanhados de alguns curtos ensaios no formato de apêndices.

Ao leitor não especialista, vale lembrar que Luís Claudio Mendonça Figueiredo é psicanalista, livre-docente da USP e professor do pós-graduação em Psicologia da PUC-SP, autor de livros de Psicologia: uma introdução (1991); Matrizes do pensamento psicológico (1991); A invenção do psicólogo: quatro séculos de subjetivação (1992; Escutar, recordar, dizer — encontros hiedeggerianos com a clínica psicanalítica (1994) e palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi (1999). Nelson Coelho Junior é também psicanalista, doutor em Psicologia clínica pela PUC-SP e professor dos cursos de pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP, autor dos livros A força da realidade na clínica freudiana (1995) e Merleau-Ponty: A filosofia como corpo e existência (1992). Para os psicanalistas esta apresentação fica aquém da efetiva contribuição que ambos têm no campo da Psicanálise local.

No parágrafo inaugural há os seguintes dizeres: “os ensaios aqui publicados resultam de muitas amizades. Em primeiro, a dos dois autores, amigos e colegas na PUC-SP, na USP e em dois grupos importantes de trabalho, O Grupo Clínico Terceira Margem e o de preparação dos Estados Gerais da Psicanálise, coordenado por Luís Carlos Menezes”. Não são apenas agradecimentos. Mas a confirmação da presença de colegas na discussão do pensamento psicanalítico por eles elaborado, é que está em questão. Parece pouco, mas não é — dar crédito ao outro. Abertura e respeito são traços contínuos no transcorrer dos textos. Sem dúvida, um bom começo para qualquer leitor neste país. Dito isto, vamos ao livro.

De início somos apresentados ao rol dos interlocutores que Luís Claudio e Nelson irão evocar: Thomas Ogden, Christopher Bollas, Sandor Ferenczi, Harold Searles, Maksud Kahn, Pierre Fédida e o casal Baranger. Na filosofia, referência está em Heidegger e Merleau-Ponty. O leitor já pode vislumbrar através das escolhas acima citadas, que a discussão será distante da arena institucionalizada da psicanálise, na qual o tema da técnica está, frequentemente, submetido.

Não é um livro de recomendações ou de regras prescritivas da prática psicanalítica; trata-se da compreensão dos procedimentos técnicos no plano da ética, ou seja, um espaço de liberdade, de pensar criticamente e com rigor o quê está subjacente aos procedimentos técnicos propostos por Freud e seus precedentes.

Ética, entendida pelos autores, “como posição e como lugar (morada), como postura fundamental, como modo de escutar e falar ao e do outro na sua alteridade — a alteridade do inconsciente. Uma ética compreendida como abertura, respeito, resposta e propiciação ao outro. Algo que não se assemelha em nada a uma "moral" e que, portanto, não poderá jamais ser convertido em um código de preposições e proibições.

Dentro da classificação de "teoria e técnica", produziram-se nas últimas décadas muitos artigos que abordaram o quê e como o analista "deveria" fazer num processo psicanalítico. Embora trate da técnica, a indagação norteadora dos ensaios está na constatação da presença de uma dimensão ética, intrinsecamente entrelaçada às diferentes proposições técnicas.

A noção de procedimento — de esfera técnica — não elimina a dimensão do outro e de sua alteridade singular. Os autores mostram que os procedimentos técnicos tem em si aspectos oriundos da prática e da experiência clínica de muitos analistas do passado e do presente, mas também nos revela o quanto as técnicas podem ocupar um lugar acomodado de saber, de eficácia ou de formatação do fazer analítico. Assim, eles reafirmam tratar-se, de fato, “muito mais de disposição ao convívio acolhedor, mas nem por isso tranquilo, com o inesperado e o irredutível que caracteriza a alteridade, do que da formulação de regras prescritivas que pudessem modelar o fazer analítico.”

O ponto mais intrigante do artigo do Luís Claudio: “Presença, Implicação e Reserva”, é quando ele sugere que possa ser vantajoso procurar as raízes melancólicas da posição do analista. E, passeando pelos desenvolvimentos de Heidegger da fenomenologia do tédio profundo, ou seja, uma espécie de “desligamento” que a radicalidade deste habita uma possibilidade de enfrentar o tempo e suas perdas como condição para uma outra forma de contato com a existência. Tem-se aí uma dialética de implicação e reserva, em que a reserva do tédio profundo remete à implicação do instante e da ação. Quando Fiqueiredo fala de uma parte entediada, está se referindo a uma possibilidade de deixar ser e que se aproxima do que o colega Ignacio Gerber chama de desapego, que seria, por sua vez, a condição de uma presença implicadíssima do analista — sem cometer a intrusividade no paciente.

Heidegger distingue níveis de tédio, a começar pelos mais banais e estéreis, sendo apenas no tédio profundo — que se abre uma perspectiva filosófica. Martin Heidegger (1929-1930). Les concepts fondamentaux.
Assim, diz Figueiredo, "manter-se em reserva, no caso do analista, é preservar uma parte entediada, desligada e indiferente, mas, por isso mesmo, disponível para o instante da decisão, para a intervenção vivaz, surpreendente e oportuna. Embora esta parte entediada e desapegada possa se assemelhar externamente à morte, é desta reserva que nos vem a capacidade de nos mantermos vivos e, principalmente, a disposição de ressuscitarmos a cada paciente, a cada análise, a casa sessão, a cada novo e inesperado elemento que uma sessão proporciona".

Um ponto em que estou em desacordo com os autores e que me parece deveria ser mais bem discutido, é a crítica feita aos psicanalistas ingleses, kleinianos, vistos às vezes de modo enrijecido, principalmente por Figueiredo, levando-o a retomar sutilmente as famosas controvérsias entre Anna Freud, Melanie Klein e seus seguidores.

Creio ser necessário contextualizar historicamente dentro dos desenvolvimentos da clínica da escola britânica, já que muitas mudanças ocorreram e, atualmente, certas críticas não possuem o mesmo terreno fértil das décadas anteriores. Sem dúvida, Figueiredo tem razão quando diz que a técnica kleiniana contrariou a exigência de reserva do analista, e até, ao contrário, revelou uma intrusividade excessiva do analista (excesso de implicação), através de interpretações profundas, que poderiam gerar mais autoritarismo e persecutoriedade do que acolhimento ao paciente. Embora esteja correto em sua indicação, temos que considerar que os ingleses trabalham muito os problemas técnicos nos últimos anos e que a preocupação com a dita intrusidade do analista foi bastante debatida, o que permitiu o surgimento de outros conceitos para responder a tais preocupações.

Dentro do desenvolvimento da clínica inglesa, temos Bion, por exemplo, trabalhando com a ideia de continência e de rêverie, e mais recentemente, o italiano António Ferro ou o californiano Robert Caper (“tendo uma mente própria”), isso para citar alguns autores entre muitos outros.

Nesse sentido, penso que há uma tentativa de justificar o advento dos conceitos de presença, implicações e reservas, como uma resposta ao excesso do kleinismo. Só que dentro do próprio desenvolvimento das ideias de Klein pelos seus seguidores, ocorreu a depuração de excessos, frutos de investigações de uma época. No meu entender e, até devido a minha proximidade com a psicanálise inglesa, considero mister registrar essa divergência.

Agora, o que tem de especial na ideia de Figueiredo de implicação e reserva? É justamente a ênfase no caráter não maníaco, antimaníaco, antimilitante da implicação de presença que é própria do analista. E isso é um problema absolutamente atual numa sociedade predominantemente da ação não implicada. Aqui reside, no meu ponto de vista, a ideia mais fecunda do artigo.

Voltando ao percurso do livro, temos Nelson Coelho nos provocando com a ideia de proposidade inaugural e de uma intercorporiedade, quando nos diz que em termos psicanalíticos, “podemos pensar a situação analítica e a produção de sentidos nesta situação, tomando-se por base um campo de profunda imbricação de experiências transferenciais e contratransferenciais, em meio aos encontros/desencontros transubjetivos, em que o corpo, com sua porosidade, aparece como elemento fundamental”.

O conceito de atenção flutuante é resgatado enquanto atenção igualmente flutuante, sendo entendido pelo autor como um “elemento central na constituição de uma ética da escuta e do falar ao outro em sua alteridade. Portanto, sendo neste lugar o encontro entre técnica e ética.

Nelson Coelho ressalta como no "difícil equilíbrio existente entre a escuta, o silêncio e a intervenção, situa-se o fio da navalha, a constante trilha oferecida ao analista a cada novo campo transferencial que se forma. A percepção, a existência corpórea, as tramas inconscientes e os múltiplos sentidos de cada fala acabam por constituir um campo de vida e de trabalho, onde aspectos técnicos e éticos precisam se manter entrelaçados".

A minha intenção é indicar uma produção interessante que nos reporta a problemas cruciais da nossa prática cotidiana e, ao mesmo tempo, lança-nos a uma situação de risco, em que somos elegantemente convidados a perder, momentaneamente, a teoria que acreditamos sustentar. Nos faz lembrar que enquanto as técnicas podem variar, a ética é o que se mantém em toda meta do processo analítico.

Assim, a ética engendrando a técnica, e não somente enquanto necessidade moral de existência de alguma ética — não é uma introdução, já é um desenvolvimento clínico neste livro. Afinal, num país que emana a sensação de que tudo esta por se fazer ou, de outro modo, uma introdução que parece não terminar, promovendo obras que mais alertam para os problemas do que instrumentalizam soluções possíveis. Podemos arriscar a pensar que aí reside uma “subtração” a ser ultrapassada. Esta obra traz os problemas e tenta destrinchá-los na tradição das melhores cepas.

O livro nos recoloca a tarefa de permitir que o homem do milênio tenha na psicanálise uma morada, onde possa serenamente repousar sua alma angustiada e ter uma experiência do divã uma abrigo que o permita sentir, emocionar-se e pensar um momento reflexivo, não maníaco, sem o qual não se consegue nem existir.

O convite dos autores é instigante, arriscado e ninguém sai impunemente, o que é um bom começo para qualquer leitor. Todos, agora, devidamente avisados.


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