•  FORMAÇÃO OU DEFORMAÇÃO?

    Marina Massi



A formação é um tema em repetição. É preciso repetir, repetir para chegar a elaborar. Com isso o tema formação está sempre em crise, porque a cada candidato vê-se o processo recomeçar; e para o candidato no seu percurso singular, ela acontecerá até que esse alcance uma identidade de psicanalista. Esta é a crise permanente da formação da identidade que o candidato vive internamente. No entanto, podemos observar que existe desde muito tempo, a crise permanente na formação, ou seja, a crise da formação institucional. E nesse sentido, gostaria de salientar, que em relação a identidade de psicanalista, pouco podemos falar e muito menos resolver, pois é um tema sempre em aberto, num eterno recomeçar; é um trabalho pessoal, de cada um dos candidatos desejantes a analistas.

Mas a crise na formação institucional, essa sim, deve ser pensada e discutida para que todos nós possamos contribuir para a melhoria das condições da formação, pois, para esta existem soluções possíveis, e que atendam a maioria dos candidatos.

A formação de identidade de analista, como dizem alguns, é da ordem do inefável, quer dizer, não basta a autorização da instituição, mas sim, o reconhecimento que o próprio analista faz de si mesmo. Sem dúvida, esta é uma parte fundamental no percurso de busca de identidade de analista, no entanto, a formação não se esgota no campo individual e interno da identidade, ao contrário, ela se estende ao institucional e social.

A formação institucional, é da ordem do real, existem exigências concretas para se obter a autorização de analista, sendo supostamente essas exigências que deveriam garantir a qualidade da formação, a respeitabilidade, e o reconhecimento social necessário ao movimento psicanalítico e a ciência psicanalítica.

Portanto, esse tema implica em pelo menos dois níveis de discussão, o da ordem da identidade de analista (o inefável) e da instituição formadora (o real), e o inevitável entrelaçamento destes. Mas julgo importante refletirmos sobre o perigo de se considerar a formação como exclusivamente da ordem do inefável, impedindo com isto, qualquer possibilidade de discussão e mudança, entrecobrindo com esse argumento a questão do poder.

A política aparece nas instituições psicanalíticas porque as relações hierárquicas e de poder estão sempre presentes, ou seja, mesmo tratando-se de candidatos, ou analistas, estamos fazendo política — defendendo interesses econômicos, sociais, ideológicos, científicos e etc. — tanto em nossa sociedade, como no movimento psicanalítico internacional. Afinal, somos filiados a IPA, e isso tem o seu significado, como também consequências.


O tripé no país da psicanálise
Todos parecem concordar com o fato da formação estar ancorada no tripé substantivo: análise, supervisão e teoria. Analisar, supervisionar e teorizar tem sido o tripé verbal do psicanalista em formação, assim adjetivado. E o psicanalista em formação, qual seria a sua conjugação? Ser analisado, supervisionado e ser teorizado?

A nós, cabe um duplo tripé. O primeiro, e talvez o mais perigoso para a identidade do futuro analista está na análise, supervisão e ensino. É nesse tripé que o “psicanalista” irá descobrir a própria forma ou arranjar a forma. Numa análise onde nem sempre o sintoma — o desejo de ser analista é compreendido. Nas supervisões onde a escuta não é analítica, mas de regras e fórmulas de atendimento; e no ensino onde a “verdade” transmitida é “ideologizada”, é para repetir e não recriar, é se por na “forma verdadeira” ao invés de descobrir psicanaliticamente a forma singular de vir-a-ser.

O segundo tripé é: atender, estudar e escrever. Esse só pode acontecer nas instituições onde a transmissão da psicanálise não é uma missa, ao contrário uma tarefa que também não é religiosa, mas provocadora e desruptora.

No “país da psicanálise”, a religião oficial é a não religião, a moral é a ética, o saber é o “não saber”, o governo é a não direção do desejo do outro, a instituição é o território da livre associação. Com isso quero dizer que a instituição de formação talvez não possa tomar para si o papel de formar um analista, mas, de criar condições para que ele faça o seu próprio percurso dentro desse tripé, ou seja, que o “psicanalista” possa desejar o como da sua formação e não ser “desejado” pela instituição. Enfim, o que fazer para não obstaculizar o processo psicanalítico que ocorre na análise pessoal do psicanalista em formação?

No meu entender, a instituição formadora já faz muito quando não atrapalha o processo psicanalítico com suas questões internas permitindo que a transferência seja realmente com o analista e não tornando-o um mero mediador da transferência do analisando com a instituição. Portanto, quando a instituição não dirige o desejo do formando e quando se despoja da carga fantasmática — de reconhecer e autorizar — que lhe é atribuída, já está cumprindo grande parte de sua função, ser continente de pessoas que desejam, e se angustiam com o sintoma — tornar-se psicanalista.


É necessário haver acolhimento
Contudo, mesmo não atrapalhando, resta a questão: como promover condições para a formação?


As sociedades de psicanálise, contribuem quando transformam a questão da autorização em pertinência e produção. A autorização tem sido o lastro de poder nessas instituições, que na realidade funcionam como associações, assumindo o papel social de constituir e preservar a “categoria” (valorizam a profissão aumentado o mercado de pacientes e o preço das sessões ...) deixando de lado sua função de acolher e propiciar o desenvolvimento daqueles que a procuram.

Não é por acaso que o segundo tripé não é considerado primordial, pois ele não regula as relações sociais de trabalho, ao contrário do primeiro que praticamente as define. Nesse caso, não faço distinção entre a ideia de análise didática ou a noção lacaniana de “passe”, pois ambos, de modo organizativo-ideológico diferente, a função permanece inalterada, ou seja, a da permissão, da licença ou do visto de entrada para o “país da psicanálise”.

“constata-se que persiste um ”status quo” que existia nos primórdios do funcionamento dos Institutos Psicanalíticos, em que os analistas didatas eram mais clínicos do que educadores. Ocupavam-se mais do paciente do que do estudante. Aí existe uma contradição porque o estudante é o vínculo para o paciente, e a prática, como já vimos, não é e não pode ser considerada uma entidade isolada. Percebe-se, então, que a teoria passa a ser vista quase como uma espécie de algo maléfico. E essa afirmação também é uma teoria.”


Teoria x Experiência
O que observamos é o completo abandono dos seminários, que ficam relegados em relação às análises didáticas, e com isso a pobreza da formação fica evidente na baixa produção teórica de nossas sociedades. O fato da função didática estar posta na análise revela a desvalorização do Ensino da Teoria, esquecendo-se de que a psicanálise nasceu também da teorização.

François Roustang nos alerta de que “se a psicanálise renunciasse a ser uma ciência transmissível independente de quem a fundou ou daqueles que a refutam com suas teorizações, ela cairia fatalmente no ocultismo ou na magia... Essa prática soçobraria no indizível e no inefável e assim em todas as manipulações obscurantistas sem o índex de um aparelho teórico. Todo o efeito terapêutico seria deixado ao poder pessoal aos dons do analista e não ultrapassaria então o nível dos curandeiros e da feitiçaria, poderes e dons transmitidos de indivíduo a indivíduo por algumas comunicações de um segredo devendo ser mantido como segredo.”

A psicanálise derruba a crença quando propõe ao analisando fazer todo o esforço para não mais crer, e sim observar, experienciar e teorizar.

A possibilidade do novo, do criativo na psicanálise está na experiência e no discurso diferente de cada analista. E isso não quer dizer, que necessariamente teremos cisões e divisões em profusão. Ao contrário, pode significar um saber não narcísico, onde o reconhecimento não é da ordem do clã, da família ou da filiação daqueles que se percebem porque são iguais, mas sim, do possível interlocutor, daquele que escuta e também responde.

Não posso pretender dar conta de todos os problemas que existem na formação institucional, ao contrário, a proposta é de enfatizar a importância da continuidade da discussão entre candidatos e analistas, e que a diversidade sirva para enriquecer as possibilidades de mudança na formação.

Nada mais letal ao desenvolvimento psicanalítico do que o reconhecimento pela semelhança, ou o irreconhecimento pela diferença. Isso seria a morte psicanalítica da psicanálise.


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