•  FREUD: PENSADOR DA HISTÓRIA

    Freud em seu escritório em Viena 1938 - Marina Massi



A psicanálise é uma ciência bastante curiosa, talvez uma das únicas onde a fidelidade ao fundador seja “critério de cienficidade”. É preciso saber tudo sobre esse “pai científico”, cabendo aos filhos provar sua paternidade, buscando alguma identidade, nos manuscritos de seu testamento.


A editora de Freud, Ilse Grubrich-Simitis, descobriu uma maleta de trabalhos do amigo húngaro de Freud, Sandor Ferenczi, rascunho do décimo segundo ensaio metapsicológico. O manuscrito recém-descoberto chega às nossas mãos através da Imago, numa edição que deveria servir de modelo daqui para frente, para a própria editora, no sentido de estar mais atenta para as traduções dos textos freudianos, principalmente nos privilegiando com uma nova edição das obras completas, traduzida diretamente do alemão.

Neuroses de transferência: uma síntese, é uma edição bilíngue, alemão-português, com o fac-simile do manuscrito e com um ensaio esclarecedor de Ilse Grubrich-Simitis e um posfácio à edição brasileira de Abram J. Eksterman.


Freud no final de 1914, em plena Primeira Guerra Mundial, dez menção em cartas a seus colaboradores e discipulados, de seu projeto de uma série de trabalhos sobre metapsicologia, aos quais havia começado a escrever após o término do estudo sobre narcisismo (1914) e do caso clínico do homem dos lobos (1918/1914). Vorbereitung Einer Metapsychologie (Preparativos para uma metapsicologia), seria a base teórica da psicanálise; entretanto devido ao período de guerra, somente cinco destes 12 artigos foram publicados; dos sete restantes, não restou vestígio algum, apesar desta época ser comprovadamente do apogeu e da provável importância destes textos.


Respeitabilidade científica
Os cincos ensaios metapsicológicos de 1915 publicados foram "Pulsões e o destino das pulsões" (1915), "Repressão" (1915), "O inconsciente" (1915), "Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos" (1917) e "Luto e melancolia" (1917). Pela correspondência entre Freud e Ferenczi, podemos mencionar mais outros quatro trabalhos desse conjunto de 12, a saber, "Consciência, Angústia ou Histeria de angústia", "Histeria da conservação" e "Neurose obsessiva". Sabemos através de J. Strachey que deveriam existir mais dois: "Sublimação" e talvez outro sobre Projeção.


Afinal do que se trata este ensaio/síntese? Podemos dizer que o manuscrito dividi-se em duas partes, sendo que a primeira constitui-se numa síntese, pois Freud trata a histeria de angústia, a histeria de conversão e a neurose obsessiva à luz de seis elementos: repressão, contra investimento, formação de substitutos e sintomas, a relação com a função sexual, regressão e disposição, sendo este último item o desenvolvimento de uma tese original e polêmica.


Em palestra proferida na Unicamp no ano passado, o filósofo Sérgio Paulo Rouanet colocou em questão a respeitabilidade científica deste ensaio, sugerindo serem necessários estudos minuciosos, pois o próprio Freud diz: “Espero que o leitor, tendo notado pela forma maçante de muitos parágrafos, como as observações foram montadas de maneira penosa e feita com muito cuidado, seja tolerante, permitindo que a crítica ceda lugar à fantasia na apresentação das coisas incertas, embora estimulantes, o que justifico na medida em que se pode assim abrir novas perspectivas.”


“Ainda é legítimo supor que também as neuroses têm de prestar seu testemunho sobre a história do desenvolvimento da alma humana.” ( p. 72)
É a partir, portanto, do elemento disposição que Freud irá determinar se aquilo que hoje parece patológico e inibidor da vida, no mundo interno dos neuróticos e dos psicóticos, não teria sido, originalmente, uma adaptação às mudanças da realidade e dos acontecimentos traumáticos. “É bem possível que aquilo a que hoje chamamos neurose tenha sido o estado normal durante alguma fase do desenvolvimento da humanidade.”


A revelação deste texto está exatamente nesta tentativa freudiana de uma “filosofia da história”, uma sequência que se repete filogeneticamente: histeria de angústia – histeria de convenção – neurose obsessiva – demência precoce – paranóia – melancolia-mania.


Possibilidade de luto
Com as privações da era glacial, os homens tornaram-se angustiados; quando perceberam que a procriação impedia a manutenção e que precisavam se limitar – ainda sem a linguagem – tornaram-se histéricos. Depois da dura experiência das eras glaciais, os homens desenvolveram a fala e a inteligência, e chegaram à organização da horda primitiva com o surgimento das duas normas: sua inviolabilidade, e que tivesse direito a todas as mulheres. Enquanto isso a vida libidinosa continuava agressiva e egoísta, sendo a neurose obsessiva uma defesa contra esse retorno.


As neuroses seguintes, de acordo com Freud pertencem à nova geração e dizem respeito aos filhos. “...coagidos sobretudo a renunciar ao mesmo objeto sexual, eventualmente através da castração, privados de toda libido: demência precoce. Expulsos pelo pai, aprenderam a se organizar, base homossexual. Contra isso se defende a paranóia. Finalmente subjugaram o pai, superam-no pela identificação, triunfaram sobre ele: melancolia-mania.” (p. 90.)

Como já disse no inicio desta resenha, a psicanálise tem algo de curioso em sua montagem: poderíamos nos utilizar da própria análise que Freud nos dá sobre o desenvolvimento da humanidade, para pensarmos a história do movimento psicanalítico, segundo o qual, após o domínio, a morte do pai primitivo, e o seu triunfo, só nos restaria aguardar a possibilidade do luto, pois afinal todos nós admiramos Freud como o pai ideal.


“Da mesma forma que a primeira luta leva para a fase patriarcal, a segunda leva à social” (p. 80), caso não seja uma suspeita transposição filogenética de minha parte, já estaria em tempo de entrarmos em luto pelo pai e alcançarmos a fase social. Ou ainda estaremos na era glacial?