•  VIDA DE MULHER

    Cotidiano e cidadania março de 1998 - Marina Massi



Muitas foram as tranformações psicossociais alcançadas diretamente pelo movimento feminista ou derivadas dele. Malgrado as críticas adversas, é inevitável a constatação da revolução por ele ministrada no mundo das relações e das coisas.


O feminismo contemporâneo tem empenhado-se no questionamento das teorias tradicionais explicativas do domínio do humano, principalmente nos aspectos que concernem a mulher e o feminino. O feminismo enquanto Teoria Crítica, tem abalado concepções filosóficas e psicossociais tanto concervadoras quanto progressistas, porque em ambas encontra-se a ão da igualdade das diferenças.


Argutamente Nancy Fraser (em seu artigo “Que é crítico na teoria Crítica?) nos relembra a definição de Marx, de 1843, de Teoria Crítica como "o auto-aclaramento das lutas e desejos de uma época.“ (O movimento feminista pode ser compreendido sob pelo menos dois vértices, o do movimento político que se oferece enquanto instrumento de ação as mulheres na obtenção de suas reinvindicações na sociedade. E por outro, enquanto um movimento crítico, capaz de sustentar uma Teoria Crítica dos pensamentos tradicionais já produzidos, mantendo um diálogo entre


Um dos desefios que apresenta é, no meu entender, de avaliar o quanto o movimento e as teorias feministas fornecem o esclarecimento das lutas e desejos das mulheres contemporâneas. Neste sentido, ganha relevo e certa premência, a reflexão sobre os impasses que a domesticidade e a divisão do trabalho na esfera do doméstico colocam para a transformação da relações homem-mulher.


O que pode observar em meu trabalho "Vida de Mulheres: Cotidiano e Imaginário“ é que o movimento feminista ao mesmo tempo que avançou com resultados sociais concretos, ele não conseguiu um registro identificatório e de reconhecimento com as mulheres, no caso, estou me referindo as dos meios urbanos. Para elas o feminismo é importante enquanto reivindica lutas mais gerais, mas nas questões específicas da mulher se apresenta distante, como algo que não lhes marcou a vida pessoal.


O feminismo ficou associado aos movimentos de defesa dos direitos humanos e da cidadania em geral, em detrimento das lutas específicas das mulheres. O feminismo passou a ter em algumas gerações uma imagem denegrida ou tão distante, que a identificação com ela é negada, mesmo naquelas mulheres que possuem alguma consientização política mais geral, participando de trabalho sociais.


Parece uma maternidade não reconhecida, suas filhas não reconhecem a mãe, apesar de terem, atualmente, viviências que são frutos das lutas feministas. Há um hiato no diálogo entre as gerações, como se uma parcela da história tevesse ficado perdida, encoberta, não narrada.


As mulheres de hoje nem sempre sabem o que elas tem a ver com as antepassadas. É exatamente nesse terreno que a ideologia mostra sua força, quando não historiciza as histórias de vida. Perde-se o diálogo com o passado e com as tradições de luta. Rompe-se o elo. Fica evidente, entretanto, que o elo perdido e a ser buscado, é a politização do privado, do doméstico, da família, da maternidade, enfim, daquilo que une as mulheres em sua vivência milenar.


A separação imaginária entre as esferas pública e privada é tão profunda que as mulheres ainda arraigadas ao doméstico não reconhecem na luta pela cidadania, uma melhora na sua condição feminina. De qualquer modo a excessiva atenção dada pelo feminismo a esfera pública, correspondeu ao imaginário destas mulheres uma igualdade artificial, tendo em vista, que a maior experiência de aprisionamento e submetimento cotidiano advém da esfera privada.


Podemos afirmar que trabalhar fora de casa tem sido o principal modificador, e devido a isto, as mudanças na vida das mulheres na ordem do público são mais evidentes do que no privado. Com toda a discriminação da mulher no mundo do trabalho, ainda é nesta esfera que se encontra mais frequentemente a oportunidade de relações simétricas e igualitárias. O espaço público é o lugar de transformações mais rápidas.


Entende-se, assim, o porque das pesquisas voltadas para a vida pública e sobre a questão do trabalho. Porém, é no secreto do cotidiano privado, familiar e doméstico que se encontram as amarras da mulher à subordinação masculina e social.


A noção de vida privada, de esforço doméstico e familiaridade é pensada correntemente como uma zona de não-conflito, de proteção, de desarmamento, de espaço secreto. George Duby, em seu prefácio de edição "História da Vida Privada" diz: trata-se de uma zona de imunidade oferecida ao recolhimento, onde todos podemos abandonar as armas e as defesas das quais convém nos munir ao arriscarmos no espaço público; onde relaxamos, onde nos colocamos à vontade, livres da carapaça de ostentação que assegura proteção externa... que não diz respeito a mais ninguém, que não deve ser divulgado, exposto, pois é muito ências que a honra exige guardar em público.” (2)


A concepção de vida privada a que me referi é ilustrativa da função social da dicotomia entre público e o privado. Trata-se de uma zona de imunidade, onde as leis do espaço público não atingem e no qual é permitido atos secretos diversos dos atos ostentados publicamente em nome das aparências que a honra exige. Ou melhor, é um epaço possível de desmandos, de desigualdades e até de selvagerias, que permanecem secretas e impunes, não afetando as aparências no espaço público.


O que fazer com tanta desigualdade na esfera privada e uma certa igualdade na pública? Benhabib e Cornell formulam, sinteticamente, o desafio em questão: “que espécie de restruturação dos reinos público/privado será possível e desejável em nossas sociedades de modo a formentar a emancipação das mulheres bem como criar uma sociedade mais humana?” (3)


A maior restruturação, talvez esteja no fim desta esquizofrenia entre público e privado. Pois, não é possível mantermos cindidas e incomunicáveis estas duas esferas quando sabemos que suas interligações são estreitas e necessárias. Da mesma forma devemos demonstrar os elos entre as lutas específicas e as gerais, pois não é possível mantermos essa cisão ideológica assentada na alienação da própria realidade.


Localizada a problemática maior, focalizemos os impasses e os incômodos relativos as mulheres dos estratos médios urbanos na esfera do doméstico.


Impasses na transição do privado ao público
O maior impasse concreto que as mulheres vivem hoje é a obrigatoriedade de conciliar o privado e o público, sem auxílio ou divisão por parte dos cônjuges ou do Estado.


As mulheres dos estratos médios que trabalham fora necessitam fazê-lo pela sobrevivência, mas carregam consigo uma nova aspiração — o projeto profissional. A realização pessoal para além da maternidade parece ser a grande tendência do comportamento da mulher, mesmo que a maternidade permaneça como o núcleo fundamental do projeto de vida.


Um dos problemas dessa mudança é que não foi possível lidar de modo satisfatório com essas diferentes mudanças, pelo fato de que a mulher se vê diante do conflito entre a realização de sua individualidade e liberdade versus a maternidade, a família e a casa.


No privado, ela tem que dar conta da casa e do lar, quase como sua mãe o fizera, com a metade do tempo desta, e sair para trabalhar. Ao voltar, diferentemente de sua mãe, deve monstrar-se atraente para o esposo (até porque, não existe mais, como antigamente, a certeza da estabilidade no casamento ).


No público, deve estar bem informada, possuir uma cultura geral, ter um diploma, mostrar-se capaz, ser organizada e eficiente e desejar ser bem remunerada, mesmo que isso de fato não ocorra. Não se trata de ser competitiva como o homem, mas de fazer "aquilo que gosta e que dá prazer ".


Tudo isso a ser conciliado, sem praticamente ajuda alguma, é uma boa imagem da “ dupla jornada de trabalho ” uma no privado, e a outra no público.


Culturalmente, através da socialização, as imagens de mulher e de homem vão se construindo e se interiorizando com esta marca do é assim mesmo, sempre foi e sempre será. A ideologia não tem história, como dizia Althusser. Assim, via de regra, o doméstico é feminino e o público masculino, sendo que tais demarcações de territórios sexuais se inscrevem internamente no indivíduo enquanto representações do que é feminino e masculino.


A mulher que trabalha fora de casa já vivência alguma ambivalência por transitar entre as duas esferas, transgredindo as demarcações dos territórios e seus correspondentes papéis. Ainda assim, podemos notar que o trabalho doméstico na vida da mulher é um fator regulador, ou seja, a partir dele a mulher organiza-se no mundo, principalmente as casadas e as que tem filhos. Só depois de equacionado razoavelmente o doméstico é que a mulher sai para trabalhar fora. Nesse sentido, o trabalho doméstico ainda "é coisa de mulher ”, não de homem,


A própria idéia de trabalhar fora revela que há o trabalho de "dentro" (doméstico); o trabalho de meio período também se remete a um outro meio período, no caso, gasto com as tarefas domésticas. Isso sem contar a tarefa que atualmente se impõe como principal que é a socialização dos filhos. Portanto, as tarefas domésticas não se restringem somente aos problemas materias, diretamente ligados à sobrevivência, mas também `a manutenção e reprodução ideológica do social.


O que as mulheres dizem é que querem outras coisas, e não querem arcar sozinhas com o ônus da família e da casa. Aí iniciam-se os seus próprios problemas e os conjugais, porque querem dividir as tarefas domésticas com o cônjuge, sem, contudo, conseguir restruturá-las em outros moldes, ou melhor em “coisas do casal” ou até em “coisas públicas”, enfim, em algo plausível com a nova demanda.


Eles e elas tem ainda os antigos modelos interiorizados de como deve ser a vida privada. Só que a conjuntura social mudou, e a antiga diva doméstica não corresponde mais às necessidades atuais da mulher que trabalha fora. A situação é complexa, e daí advém a crise de representações do que é “coisa de mulher” ou “coisa de homem” ou do “casal”. Pois, ao mesmo tempo em que existem reinvindicações por mudanças, é frequente que internamente vinguem modelos interiorizados incompatíveis com a própria transformação desejada.


Há, como diz, Sérvulo Figueira (4), a convivência no sujeito, em níveis diferentes, de dois ou mais conjuntos de valores (ou mapas) internalizados ao longo de sua biografia, só que essas internalizações podem se integrar ou conflitar. No caso, parecem ser mais conflitantes do que interativas, quer dividir as tarefas, porém, quer continuar organizando de um jeito que diz ser feminino, não permitindo compartilhas as decisões sobre o doméstico com o homem.


Um dos aspectos da necessidade de trabalhar fora é a busca de uma identidade social e de liberdade individual, esse aspecto pode ser um sinal de emancipação, mas não nos enganemos, pois as mulheres tem ainda no âmbito do privado sua maior realização pessoal.


O trabalhar fora é uma ocupação que elas julgam ser mais valorizada pela sociedade, assim é encarado por elas como uma forma de enriquecimento pessoal, e de estarem atualizadas como os homens. Ficar em casa ressoa como confinamento do mundo e isso não aceitam mais. Nesta ótica, trabalhar fora significa um ganho em relação ao privado. Mas, novamente as contradições são emeregentes, porque no público, por sua vez, o trabalho da mulher não é geralmente valorizado como o do homem; são mal remuneradas pela sua competência, descriminadas na divisão do trabalho, enfim, o que é valorizado num domínio é desvalorizado no outro. E, novamente a mulher se vê atrapalhada com a questão da sua identidade como sujeito social.


Outro ponto interessante que pude observar é que elas trabalham fora como um meio de se livrarem ou negociarem com os cônjuges o lado maçante das tarefas domésticas. E mesmo aquelas que não poderiam deixar de trabalhar em razão da sobrevivência, também se valem da mesma manobra, só que nem todas possuem consciência deste subterfúgio, com isso, a vida pública serve à privada.


A mulher hoje sofre com a interiorização ideológica da necessidade de trabalhar fora e com os seus próprios padrões advindos de uma sozialização que lhe apregoava a idéia de que ser mulher é ser do lar. Notamos a ausência de preocupação ou desejo de serem produtivas, nem tão pouco trabalham pelo dinheiro. Elas falam muito em realização pessoal, ou seja, é importante ter uma ocupação que ajude-as crescer e se desenvolver como pessoa, mas a real contribuição e produtividade social que elas podem dar está na maternidade, no cuidado aos filhos, no lar, no bem estar da família.


Impasses no Lar e na Maternidade
O conflito mais grave entre os cônjuges ocorre com o nascimento do primeiro filho, e a exigência das funções maternas e paternas serem assumidas. A vida doméstica, propriamente dita começa para a mulher com a maternidade. O filho é um marco divisor entre o espaço do casal e o familiar.


Nesse momento, as mulheres queixam-se de solidão, sentem-se abandonadas pelos maridos, que parecem despreparados para assumir o lugar de pai e também de companheiro nas responsabilidades das tarefas diárias da casa. Se por um lado a vivência da maternidade é gratificante, por outro, traz um distanciamento entre os cônjuges.


Elas admitem um salto qualitativo depois da experiência da maternidade e sentem que amadureceram durante o processo. Esse fato causa conflito com os maridos que, no entendimento delas, não vivem uma transformação interna ou externa tão significativa com o nascimento dos filhos.


A modificação do marido só é reconhecida em termos da responsabilidade de prover com mais dinheiro o lar, embora reclamem da ausência afetiva e do exesso de horas de trabalho fora de casa.


A dificuldade maior é quando elas percebem que a vida mudou inteiramente só para elas, são pegas de surpresa; a realização pessoal e narcísica da maternidade vem acompanhada da depreciação e regressão, na qual a mulher se sente dependente do homem para sustentá-la economicamente e com o fato de que sua rotina quotidiana teve de ser restruturada totalmente.


Sua independência e autonomia são drasticamente cercadas nesta situação. Ao olhar para a vida do companheiro, dá-se conta de que pouca coisa mudou, que ele tem livre acesso ao mundo como antes.


Pude notar que surge um sentimento de inveja dessa liberdade do homem, algo que a mulher sente que perdeu de modo irreparável, depois do nascimento dos filhos, nunca mais será a mesma, a mente terá sempre algo para ocupar-se e preocupar-se. E de fato, vale ressaltar que essa disponibiliade interna existe nas mulheres para com os filhos, ao passo que, os homens delegam grande parte da responsabilidade para a mulher.


Eles cobram das mulheres o bem-estar dos filhos, aliás eu acrescentaria que o Estado também cobra delas, como muitas vezes, nós da área da saúde também sobrecarregamos essas mulheres com as mesmas cobranças.


Voltemos ao nascimento dos filhos sob outro ângulo. Um dado que me chamou atenção e que pode contribuir no entendimento dos impasses nsa transformações da relação homem/mulher é o fato de que precisamos considerar a vivência e a lógica da socialização de ambos os gêneros. Por exemplo, as mulheres se queixam de solidão e de que o companheiro permanece impermeável às mudanças que o filho traz a vida doméstica do casal. Só que a parte mais oculta na narrativa das mulheres é que esses filhos não foram verdadeiramente planejados conjuntamente.


Na maioria dos casos que pesquisei, as mulheres queriam engravidar e o cônjuge achava que ainda não era o momento dele. O motivo alegado, quase sempre, era que não havia ainda alcançado uma estabilidade profissional e financeira que os deixassem mais seguros e disponíveis para a paternidade. Porém, elas engravidavam por acaso, ou seja, ocorre à revelia deles. Elas conseguem criar o fato consumado; o controle é total da mulher, que o exerce de acordo com a sua necessidade de adquirir uma identidade feminina, afinal, a realização pessoal das mulheres está ligada à maternidade, havendo uma enorme premência em efetivá-la.


Só que os homens sentem-se um tanto traídos e excluídos da decisão, e de algum modo deixam o maior encargo a elas, uma forma de vingança velada pela exclusão da decisão unilateral. E com isso instala-se uma relação de diferenciação nas atribuições e responsabilidades dentro do casal.


As mulheres parecem não ter consciência da manobra que fazem e apresentam várias razões para o ocorrido, negando que os excluíram. A desculpa mais frequente é que já se pensava mesmo em ter filho, e que a questão era só de tempo. Aí se vai o tempo do outro, do homem. A maternidade e os filhos ficam como uma questão exclusivamente feminina.


Culturalmente, o modelo do exercício da maternidade — a total dedicação da mãe ao seu bebê ou filhos — vem resistindo a mudanças. A forte presença da ideologia da maternação revela que, apesar das mudanças na esfera do público, e da problematização dos papéis sociais realizada pelo feminismo, ainda não houve uma transformação significativa nas próprias mulheres.


As mulheres permanecem sendo o centro do cotidiano doméstico-familiar, encarregando-se e, concomitantemente, encarregada de tocá-lo e de ser a responsável pelo que acontece na ordem do privado.


Não podemos deixar de lado uma particularidade da nossa sociedade que interfere diretamente na vida privada, que é a presença da empregada doméstica no lar. Acredito que o conforto radical entre o homem e a mulher por causa do gerenciamento do doméstico somente ocorrerá com a impossibilidade da mulher dos estratos médios contratar uma empregada doméstica. Pois, parte das tarefas pesadas ou mesmo maçantes do cotidiano é delegado a empregada poupando o casal de discutir a divisão de tais trabalhos. A conciliação sem uma alteração profunda na forma de organização do lar e da divisão do trabalho doméstico mantém-se em grande parte pela presença de um staff que dá suporte a mulher e desobriga o homem nas tarefas.


Outra característica do trabalho doméstico é a sua invisibilidade social. Invisibilidade esta, que custa caro a mulher que vê desvalorizada a sua mais pesada carga de trabalho. Além disso, essa invisibilidade toma uma parte significativa de sua vida, e isso pode ser verificado na insistência com que elas se referem a necessidade de defender o seu espaço, e um tempo só pra si.


É uma maneira de garantirem a individualidade e de propiciarem algo exclusivamente para o seu próprio Eu, que diariamente indiscrimina-se com os filhos e marido, tornando-se infantilizado com os filhos e subserviente com o marido. Uma certa deformação do Eu que pode ocorrer, caso não haja este espaço e tempo de resgate individual.


O entrave que o doméstico gera na relação amorosa
Os desencontros amorosos e sexuais na vida do casal podem ser, também, compreendidos sob o vértice do peso do cotidiano doméstico. As divisões de papéis e as atribuições de responsabilidade tem muita influência na vivência amorosa.


No lar, por exemplo, a figura feminina é sempre a da mãe, daquela mulher atarefada e sufocada pelo afazeres domésticos, pelos cuidados com os filhos, enfim, pela ideologia da maternação que desfigura a face amorosa e sexual da mulher, que retira sua libido, gastando-a com um trabalho desvalorizado e não remunerado.


Além disso, a mulher traz para o casamento a concepção de que cabe a ela cuidar das relações afetivas, e acaba por cumprir o papel da conciliadora e de quem tem os cuidados com o outro. A mulher aceita ser mais cobrada pelo homem do que exige dele na relação afetiva, familiar e doméstica.


O lugar de conciliadora imputa à mulher uma posição inferiror, ou seja, de ceder sempre para que a relação se mantenha duradoura. Até para conversar com o marido as mulheres acham que “tem que ir com muito jeito”, porque se não pode dar briga.


Essa reverência, esse tratamento especial, indireto, para não agredir, revela muito da assimetria da relação. Existe uma aparente igualdade ou intimidade, pois o marido sente-se no direito de não compartilhar certos assuntos.


A questão da comunicação entre ambos, é mais ponto, que merece ser comentado. Pude constatar que as mulheres tem a expectativa de que os maridos as entendam num nível pré-verbal, ou seja, existem fatos que não precisariam ser falados e que deveriam ser prontamente percebidos. Mas isso não ocorre, sendo, para as mulheres, motivo de grande frustração e sentimento de falta de cumplicidade por parte do homem.


A mulher devido a sua socialização voltada para a emotividade e o desenvolvimento mais acurado da percepção do outro, capta e expressa com riqueza os femômenos psíquicos e emocionais. Essa capacidade tornar-se-á mais acentuada com a experiência da maternidade, quando acontece uma comunicação não-verbal muito intensa com o seu bebê.


A comunicação também resvala na vida sexual, as mulheres acreditam que os homens tentam resolver muitas dificuldades do cotidiano no ato sexual, como se o sexo servisse de reasseguramento de que tudo vai bem na relação. Não parece correta a afirmação que as mulheres tenham um desejo sexual menor que o homem, mas, talvez, que elas não depositem todos os afetos e ansiedades no sexo. É comum a idéia de que o homem carrega sua tensão no sexo, e não bem o seu desejo sexual. Nestes casos, elas sentem-se tratar-se de um interesse dissociado delas. Quer dizer, poderia ser com qualquer mulher, qualquer uma serviria como objeto, o que acarreta num incômodo, numa sensação de estar sendo usada e não desejada.


A socialização diferente dos gêneros deixa suas marcas nas diferentes áreas do relacionamento. Este abismo entre o mundo da mulher e o do homem tem raízes nos modelos interiorizados que se desencontram, mesmo quando convivendo juntos.


Algumas considerações finais
O que podemos depreender dos aspectos abordados é que, apesar da mulher transitar entre o privado e o público, não alterou substancialmente os padrões tradicionais da família patriarcal. Assim, a vida quotidiana das mulheres dos estados médios é permeada por contradições de uma prática do passado e do projeto futuro.


Fica evidente a necessidade de a sociedade se reorganizar, mas também, que nada mudará no social senão ocorrer uma reorganização do mundo interno, simbólico, do que é ser Homem ou Mulher. A ideologia patriarcal impede a mulher de pensar como problema social a manutenção do lar e da maternidade. Aí está o elo que o feminismo precisa resgatar, a sua importância na reflexão da ideologia patriarcal e a sua desmontagem em favor da conscientização e sensibilização das mulheres frente a dominação na ordem do privado.


Não é possível falarmos em democracia, liberdade e igualdade social, com tanta desigualdade na vida privada, temos que refletir o que significa essa disparidade no discurso político para com o privado e o público. Essa dicotomia tão profunda entre os dois domínios é absolutamente desfavorável as mulheres e as transformações na relação homem/mulher.


É necessária também a politização da maternidade e dos cuidados aos filhos, politização no sentido de que é uma função social. Não devemos transformar simplesmente as mulheres em homens, colocando-as no mundo público com a ilusão de que somente essa inserção já as emancipa. O pleno exercício da cidadania, no caso das mulheres, significa garantir que as funções especeificas das mulheres sejam amplamente reconhecidas enquanto tal e esseguradas pela sociedade e pelo Estado.


Entretanto, há uma luta que passa por dentro das mulheres, trata-se do entendimento de que os filhos não são só nossos, eles são deles mesmos e são cidadãos do mundo. É, exatamente, no privado que os futuros cidadãos são criados, e portanto, a prática da igualdade, de não-violência, da sociedade e da democracia real começa em casa, no cotidiano e no imaginário da vida privada. A mudança estrutural só poderá ser alcançada caso inclua em seu bojo a transformação da mentalidade dos homens e das mulheres. Mais do que mudar as leis é preciso ter a utopia de revolucionar as mentalidades, e exigir que as leis retratem essas mudanças.


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